Uma casa simples alugada há alguns meses
Numa rua calma no número threes
No portão pequeno vendese biju
Fachada apagada branca e azul
Em cima do muro um bichano circense
Quando o latido vira lata não convence
Roupa pendurada no varal de bambu
E a sombra preguiçosa do pé de caju
Dois degraus e o chão vermelho desenha
Uma cozinha perfumada pelo fogão a lenha
Quem tem a senha tá de costas na pia
De chinelo de borracha e avental de bolinha
Por baixo um penhoar bordado de linha
Cabelo cacheado esconde a lágrima que pinga
A lágrima da desconfiança quem assina
É a personagem da história Dona Vilma
Casada por amor com autorização dos pais
Ainda era menor cinco anos atrás
Saíram de Goiás pro Bairro do Pari
Um casal apaixonado vencia o mundo ali
O juramento de amor intenso e eterno de Vilma e Ernesto
Veio refletir num brilho de glória
A menina vitória
Seu sorriso os que choravam fazia sorrir
Suja de tinta suada faminta
Volta da escola e encontra o pranto da Vilma
Joga a mochila como um furacão Katrina
E abraça Não chora mamãe, comovida
O choro começou quando tocaram a campainha
E disseram pra Vilma que o marido a traía
Ela já sabia mas não acreditava
Abatida machucada ferida respondia
Protesto meu marido eu não empresto
Ele é só meu e não tô nem aí pro resto
Trabalhador fiel honesto um ótimo pai
Calúnia contra o ernesto
O discurso foi bonito mas murcho
Falou falou falou mas não quis dizer muito
Se sentiu desonrada sem rumo
Menos mulher sem orgulho
Vilma vou sair com a vivi e não demoro
Logo tô de volta não se esqueça te adoro
E na manhã chuvosa Ernesto de folga
Saiu pra passear com sua menina Vitória
Vilma tava em casa no seu passa tempo a louça
Ouviu bater na porta o carteiro e sua bolsa
Tava encharcado a chuva tava muito grossa
Entra e se enxuga disse a menina moça
Coisas perversas visitaram o pensamento
E lembrou da conversa da traição no momento
No fundo no fundo ela ouviu tudo
E as palavras fofoqueiras encontraram refúgio
De pouco em pouco entrou no coração
Preciso dar àquele cachorro uma lição
Se aproximou do carteiro e sussurrou
O carteiro entendeu a mensagem se encantou
Suma doçura seu perfume depura
E aquele lago azul de ternura, contaminou
E nisso Ernesto voltou que desgosto
Viu na fresta da janela e escondeu o rosto
Ahh Martírio, tortura, agonia
Não acreditava o que seus olhos lhe dizia
O silêncio angustiante da morte o alcançou
Aquela morte que o corpo continua com dor
O suor pela têmpora escorria
E a sua mão trêmula sacudia
E o sangue foi subindo o ódio em sua mente
O punho contraído também contraía os dentes
Com a face sombria, sua honra partida
Pensou em muitas coisas, deu um frio na barriga
Olhou pra trás, a pequena vitória
Entra no carro filha vamos embora
Respirou fundo atordoado ficou confuso
Pôs a filha no carro nem pôs o cinto e saiu disparado
O pneu careca o farol queimado
É no pedal direito que se descarrega a raiva
A chuva tá mais forte e a estrada é uma tocaia
E quando de repente na curva do rio
Uma poça a derrapagem
Capotou e caiu
O resgate à dois dias na labuta da busca
Encontraram um fusca tão torto que assusta
Um soldado cansado sem esperança resmunga
Que o rio levou os corpos e c**r não afunda
No terceiro dia na margem ao lado
Um corpo achado inchado desfigurado
Desanimaram só um corpo e mais nada
Vilma sem família com a tristeza exata
Vestida de luto em pânico aos soluços
Com a consciência e o coração imundo
Desgosto profundo aflição amarga
Ninguém é preparado pra levar essa carga
Viúva sem trabalho sem dinheiro
Já bastava, mas o fruto proibido do pecado não apaga
A fome, o cansaço, invadiram sua casa
E a gravidez é o castigo a chaga
A calma do ar e o silêncio do feto
Enfraqueceu seu ânimo, não tinha afeto
É só um objeto, e não é do Ernesto
Vou tirar isso de mim com agulha eu espeto
Depois de todas tentativas do mundo
Prosseguiu a gravidez com um nojo profundo
Amargura, a dor aguda lembrou da traição
A tristeza visitou novamente o coração
Aceitou o carteiro como esmola
Vilma queria sua família de volta
O carteiro Edvaldo aceitou a proposta
Se o filho não é dele tudo bem ele adota
Queria colocar o seu nome e sobrenome
Pra Vilma tanto faz só não quer passar fome
Nasci com desprezo odiado indefeso
Sem esperança, com medo ao relento
Mas com o mesmo nariz boca cabelo crespo
Fisionomia de Ernesto um homem preto
Um dia ainda quero me encontrar com a vivi
Minha irmã que sem eu ver posso sentir
Meu pai um grande homem que jamais a traiu
Morreu de desgosto antes de cair no rio
Queria ter meu pai de volta com vida
Pra nunca me chamarem de Edvaldo Silva